Metralhadoras furtadas do Exército em SP podem acabar em poder de facções
Segundo especialistas, o armamento pesado pode ser vendido no mercado ilegal ou alugado pelas organizações criminosas
Nesta terça-feira (17), o furto das 21 metralhadoras do Arsenal de Guerra do Exército da base de Barueri, na Grande São Paulo, completa uma semana. Cobiçadas pelo elevado poder de destruição, as armas podem terminar em poder de facções criminosas, segundo especialistas ouvidos pelo R7.
Dois modelos desapareceram da base militar: 13 metralhadoras de calibre .50 e oito de calibre 7,62. A primeira categoria, utilizada em cenários de guerra como no Oriente Médio, é a que mais preocupa os pesquisadores em segurança pública.
Com capacidade de disparar cerca de 600 projéteis por minuto, a metralhadora .50 tem o alcance de até 2 km, pode perfurar blindagens — como de carros de transportadoras de valores — e até mesmo derrubar helicópteros.
“É uma arma que interessa as organizações criminosas, principalmente para ações típicas do novo cangaço, nas quais eles cercam as cidades, isolam batalhão da Polícia Militar e delegacia e fazem a população toda de refém”, explica Roberto Uchôa, policial federal e membro do conselho do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Em 2017, mais de 8 milhões de dólares foram roubados no mega-assalto à transportadora de valores Prosegur em Ciudad del Este, no Paraguai. Cerca de 50 pessoas — com ligação com o PCC (Primeiro Comando da Capital) — invadiram a sede da empresa, justamente com metralhadoras antiaéreas.
Para Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, outra preocupação sobre a circulação desse tipo de armamento entre as facções criminosas é o uso contra as forças de segurança.
Um caso conhecido é o do helicóptero da Polícia Militar atingido por tiros de traficantes no Morro do Macaco, na zona norte do Rio de Janeiro. O episódio ocorreu em 2009 e é um exemplo de como o uso desse armamento pesado por organizações criminosas não é uma questão recente.
Em razão da capacidade ofensiva, Langeani classifica o furto das metralhadoras da base militar como um problema de segurança nacional, além de impactar o setor privado. O desvio do armamento também evidencia uma falha de segurança grave do Exército, afirma o pesquisador.
“Isso não é um caso isolado. [O desvio] tem acontecido até de forma rotineira, e isso preocupa, porque se o Exército observa que tem um problema no seu controle de armamento dentro dos seus arsenais e não melhora, nós temos um problema”, complementa Uchôa.
Outro atrativo da metralhadora .50 – que é de uso restrito das Forças Armadas – é a possibilidade de venda no mercado ilegal. O valor pode variar de R$150 mil a R$200 mil, dependendo da oferta e da demanda.
“Não é uma arma que você consegue facilmente no mercado. Normalmente, ela é desviada de Forças Armadas do Brasil ou de países vizinhos. Então, tem demanda e muita gente interessada em comprar”, reforça o membro do conselho do FBSP.
Carlos Augusto, cientista político e integrante do Grupo de Pesquisa em Segurança Pública e Violência e Justiça da UFABC, aponta outra utilidade para o armamento de calibre pesado furtado: o aluguel.
“[A arma] pode até ser vendida, mas a utilidade mais lucrativa é o aluguel. As organizações criminosas que praticam roubo costumam alugar os armamentos. Elas não têm propriedade. Então, é uma rede econômica muito bem estabelecida e organizada”, explica Augusto.
O aluguel pode ser realizado para um tipo de evento em específico ou por dia, e o valor pode alternar entre R$50 mil e R$100 mil dependendo do tipo de armamento, de acordo com o cientista político.
Cada metralhadora .50 pesa aproximadamente 50 quilos. Todo o equipamento furtado do Arsenal de Guerra, na semana passada, soma mais de meia tonelada de metal, ou seja, dificilmente a ação criminosa poderia ser executada sem ajuda interna, apontam os especialistas ouvidos pela reportagem.
“Ninguém entra em um batalhão do Exército revirando todos os prédios. Esses casos são feitos muito direcionados, e, nesse caso específico, eu particularmente não tenho nenhuma dúvida de que houve participação interna pela dimensão”, afirma o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
Para Langeani, o crime é fruto de uma encomenda com participação no crime organizado. A ação criminosa exigiu planejamento logístico e financeiro, por isso não poderia ser realizado por pequenos grupos.
Uchôa também aponta que o furto expõe a fragilidade no controle de armas pelo Exército brasileiro e pelo governo federal. “Não basta controlar e lutar para retirar o que está chegando. É preciso evitar que esses desvios continuem acontecendo”.
Atualmente, o Comando Militar do Sudeste e uma equipe do Departamento de Ciência e Tecnologia, enviada da sede em Brasília, são os únicos a investigar o crime.
Como nenhum integrante do Exército procurou a Polícia Civil para registrar boletim de ocorrência, a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) informou que não participa das investigações.
Entretanto, a pasta informou, em nota, que “as polícias Civil e Militar empreendem massivos esforços no sentido da localização do material subtraído e da identificação e prisão dos autores do crime”.
No sábado (14), o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, ainda declarou em suas redes sociais que o furto das metralhadoras pode ter “consequências catastróficas”.
À reportagem, o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz assegura que o Exército erra ao tentar investigar o crime sozinho e não acionar outros órgãos para ajudá-lo na recuperação das armas.
Em 2009, sete fuzis foram roubados de um quartel em Caçapava, no interior de São Paulo. Na ocasião, os militares receberam ajuda das polícias Civil e Federal, conseguindo recuperar todo o armamento após três meses, relembra Langeani.
Essas instituições, segundo o pesquisador, já possuem uma estrutura de monitoramento de facções criminosas – como o PCC e o CV – com escutas telefônicas e acompanhamento de lideranças. Em contrapartida, o Exército não detém essa expertise.
O cientista político Carlos Augusto também aponta para problemas operacionais nas Forças Armadas que corroboram para os desvios de armamentos, como a estrutura antiga e precária dos quartéis e a contratação temporária de funcionários.
“Não são carreiras fixas, de longa duração. Isso faz com que haja a precarização da execução do trabalho e possibilidade de cooptar mais facilmente esse agente que está lá dentro”, exemplica.
Questionado sobre o andamento das investigações, o Exército se limitou a informar que estão em curso e sob sigilo. Um Inquérito Policial Militar também foi instaurado.
A corporação ainda afirmou que 480 militares estão aquartelados desde o desaparecimento das metralhadoras. Isto é, eles não podem deixar a base militar. “Os militares estão sendo ouvidos para que possamos identificar dados relevantes para a investigação”, diz o comunicado.
Letícia Dauer, do R7
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